Cadernos esparramados,
copos americanos de borco numa bandeja de plástico, abridor pendurado no
barbante, gaveta com algumas moedas à mão, notas maiores no fundo sob uma
caderneta amarela, pia com alguns copos sujos, balcão de madeira manchada por
todo tipo de bebidas, principalmente a cachaça, a mais vendida
indiscutivelmente, depois o chicle que tem figurinha e em terceiro as bolinhas
de gude.
Dois engradados de cerveja lhe serviam de acento, pernas
balançando, mascava chiclete, de vez em quando uma bola vermelha se formava na
boca pintada de batom anil, outras estourava num ploc- ploc e ela a garota dos
olhos azuis, voltava a enchê-las soprando, nos deveres de casa.
Na mão uma caneta esferográfica, tinta azul, escrevendo em
letras discursivas nas pautas, o rádio pendurado num prego na parede na entrada
do WC. Antigamente escrito “mictório” podia-se fazer o número um, depois com a
melhora do estabelecimento aumentou-se a área e colocou-se um vaso e agora se
podia fazer também o número dois.
O trabalho aumentou
devido à educação e intestinos dos clientes que faziam obras de cores, tamanho
e cheiros dos mais variados e absurdos possíveis. Era responsável pela limpeza. Usava vassoura, rodo, sabão,
detergentes, creolina, toda parafernália para se ter um bom ar.
De mictório passou para
WC. Foi num filme que ela viu e gostou. No filme uma loira linda entrava em um
bar, beira de estrada, empurrava uma porta que ficava balançando. Essa cena
chamou-lhe a atenção. Estava procurando melhorar o ambiente e escreveu
“Ambiente familiar”, depois que alguns fregueses quiseram se engraçar prá ela.
Estudava nas folgas e
era no balcão que fazia os deveres de casa. Era a única filha do dono da
birosca, que ficava na subida do morro do biscoito, no início da favela do
urubu. Pensava no futuro.
O pai, Seu Francisco, vindo do Nordeste, fugindo das secas, montou
aquele negócio depois que foi mandado embora da fábrica, tempos difíceis
aquele, a classe política não saiam das manchetes, tempo de propinas,
corrupções e todas as mazelas inerentes á democracia. Tem país que se pegar um
camarada roubando cortam-lhe a mão dizia o pai quando discutia com alguém, e
outros até que tem pena de morte. O ruim é que nesses países não se vive em
liberdade, como viver assim, presos como passarinhos em gaiolas?
O caso foi que as firmas estavam contratando cada vez menos,
e numa leva o pai ficou desempregado e aproveitou o FGTS por tempo de serviço, comprou
balcão, freezer, conjunto de mesa, centenas de copos americanos, sinuca e estufa. Fizemos
um puxadinho na frente, fritamos Pé de galinha, moelas, fígados, coxinhas, quibe,
pastel de carne, de queijo, todo tipo de frituras, afogados em óleo.
Agora eu tentava organizar o lugar, ficar bacana,
apresentável, mesmo sabendo que tinha que cortar gastos, a crise estava braba,
jacaré nadando de costas, por sinal, no banheiro o papel eram pedaços de jornais. Um absurdo achou ruim
com o pai, comprou papel higiênico, assim não pode e a categoria do lugar? Hem!
Hem! O pai disse que era gasto supérfluo, mas ela bateu pé, tem certas coisas
que não pode cortar, e assim ela tomou frente para melhorar o lugar.
Não pai, isso é economia burra, vai contra o negócio, e o
pai ouvia, afinal era a única que estudava, a mãe era faxineira a noite nos
prédios vizinhos, tinha a sua clientela, tinha feito até no computador da filha
um cartão de visitas, Fatinha, faxinas em geral, honestidade em primeiro lugar.
Tinha notado com essas pequenas mudanças a melhora, além do
Zezinho pé de cana, de fiinho magrelo, jogador de sinuca, do chapa de caminhão
Expedito, de Claudio apontador de bicho, do aposentado da coletoria seu
Joaquim, os flanelinhas Paulo e José, agora marcava presença um fotógrafo e um
amigo dele que não tirava os olhos de cima de mim.
Ele que deu a dica, faz assim coloca alguns copos americanos
no freezer, e serve os fregueses. No meu negócio faço assim. Vão gostar. E todo dia à tarde sem falta eles
chegavam, sentavam-se à mesa do canto, pediam o de sempre, uma porção de
fritas, e uma loira gelada.
Depois ficavam fazendo perguntas, onde eu estudava, quantos
anos tinha, quantos irmãos, se gostaria de ser modelo, tinha jeito sim, era esguia, eu ria, e voltava para
o balcão fazer meus deveres.
Levei as fritas. O fotógrafo via algumas fotos enquanto o
outro me observava. Ele parecia legal. Usava um tênis de marca, bermuda jeans e
óculos da okley. Quando nossos olhos se encontravam ele sorria.
“A presidente não tem culpa, ela é honesta, não provaram
nada contra ela... “Dizia Feiinho magrelo enquanto mirava uma bola sete.
“Não tem culpa, mas acontecia tudo nas barbas dela”, gritava
seu Joaquim aposentado da coletoria.
A bola saiu lisa e
lenta girando no pano verde. Tocou levemente na tabela do canto e ficou cai não
cai. Os flanelinhas vibraram. Feiinho bateu o taco no chão. O chapa passou giz
nas mãos, giz no taco, debruçou sobre a mesa, balançou três vezes e encaçapou.
“A culpa é desse velho nojento! Funcionário público federal chupadou das tetas do governo! Isso é que você é! Um Mamador! Um Coxinha! Pilantra!
“ E você é um bolsa família, vermelho, comunista! Um
miserável!”
Feiinho levantou o taco.
Os Flanelinhas seguraram um de cada lado.
“Deixa disso! Deixa disso! A verdade é que só tem ladrão!
Tinha é que implodir aquele congresso! Aquele antro!”.
Acalmaram-se. O chapa só observava em pé debruçado no taco.
Feiinho tirou dez pratas e jogou na mão dele.
Meu pai já disse que não queria jogo de aposta aqui! Sempre
dá briga!
A culpa é desse velho... Seu Joaquim quis levantar...
Se brigarem novamente não vai ter aposta...
O jogo voltou. Silencio. Só as bolas caindo, rolando, giz, o
radio, fumaça, descarga, tampinhas, olhares e olhares.
Eu agora usava batom, cabelos penteados, unhas feitas, menstruei
semana passada. Foi um sufoco. Umas dores, cólicas. Bicho estranho a mulher. Passei
a usar sutiã por que o amigo do fotógrafo não tirava os olhos. Eu assim, meio
que gostava.
Foi no sábado. Eles chegaram, pediram o de sempre, e quando abri
a cerva, o fotógrafo perguntou se eu não queria tirar umas fotos de teste. Eu
disse que ia saber de meu pai, eu era menor de idade, eles falaram que não era
necessário, que os pais temem pelo sucesso dos filhos, que era somente um teste,que se ele mesmo não
tivesse saído do interior, batalhado, hoje não seria um publicitário de sucesso,
e isso e mais aquilo, e foi desfiando uma conversa sem fim e eu para não ser
rude disse que ia pensar e fui para o balcão.
Mas essas coisas são danadas, o ego, a satisfação de ser
reconhecida, adorava Self, postava em tudo que é lugar, face, whatsApp,
blogs, é como cupim em madeira. Vai
comendo por dentro.
Fechei o bar mais cedo, àquelas horas, vai ficando mais
perigoso, fui guardando as mesas, lavando os copos, empilhando os tacos, as
bolas, lavar o banheiro, tocos de cigarros, cabelos no branco do vaso, respingo
de urina, de fezes, uma imundície, descargas, finalmente apaguei a luz, o
cupim, madeira fraca, sonhos, o ego, as amigas da escola, a vida melhor.
*
Foi numa dessas voltas contumaz. Gosto de andar pelas
favelas a cata de material. Escolho a dedo. Os clientes sempre querem novidade.
Aí que eu a vi, estava abrindo o portão de correr, um shortinho curto, uma
bunda empinadinha, gostei. Prometi. Vai ser minha e de mais ninguém. Terei que
chegar com jeito, ela é muito nova, talvez virgem não se sabe. Passei de volta
depois, sondando, ela estava no balcão, pensei entrar, desisti não, na próxima
vez eu entro, deixa está, e acelerei.
Na segunda vez levei meu parceiro. Ele sabe como atraí-las.
Encostei o carango rebaixado, sonsão batendo, as cornetas enchiam a traseira, junto as caixas ,faziam Tum Tum Tum, ah! Ah!
Quase levantava o barraco. Desliguei. O pessoal saiu á janela. Ela ficou
olhando desconfiada. Entramos e pedimos uma bebida. Ela veio com aquele
shortinho, tudo espremendo, a bunda, a barriga, dividindo.
Discutimos seus dotes
eu e meu parceiro. Ela ficou no balcão olhando de longe. Ela não tem irmão. Menos
um empecilho. Pedimos a segunda, e umas fritas. Os peitos pequenos, apontando
na blusa de malha. Saboreei a cerveja. No ponto. Foi aí que meu parça iniciou o
plano.
Você não quer ser
modelo, tirar algumas fotos, teste, você tem jeito, é esguia, olhos claros e
quem sabe a próxima Gisele Bichem, essas coisa e os olhos dela brilharam, eu
vi, suspirou fundo, quando ele disse, que modelo viaja muito, conhece outros
países, outra vida. Aquilo foi como um raio em sua mente, quase entrou em
transe.
Aqui eu sorri, ela baixou o olhar, disse que ia falar com o
pai, me apresentei, Ricardo é um prazer, apertei a mão dela, fria, fugidia,
retirou-a apressada, pensei: vai dá trabalho, a danada, mas paciência.
Nisso começou uma discussão lá nos fundos. Um velho e um
jogador de sinuca. Pedimos a conta. Pagamos e ela pediu desculpa, nada, somos
acostumados e saímos.
*
Logo depois que saíram fechei o bar, fui falar com meu pai.
Minha mãe ainda não tinha chegado. O senhor não pode deixar apostar aí, quase
deu briga! Eles rosnam, mas não brigam, os conheço de muito tempo disse meu
pai. Eu sei disso, mas pega mal né? Quero fazer esse bar de respeito! Agora que passou a ser mais bem frequentado.
Mas meu papo é outro! Uns caras aí querem me fotografar,
dizem que posso ser modelo, ganhar muito dinheiro, deixou o cartão. Veja. Ele
olhou desconfiado, pegou o cartão, sei o que eles querem muito bem! Fique longe
deles! O senhor é muito desconfiado, fique sabendo que eles são muitos educados
e, além disso, quero estudar, formar, ter uma profissão.
Fiz minha cama para dormir. Demorei pegar no sono. Fiquei
desfilando nas passarelas pelo mundo á fora. Lá pelas tantas apaguei, e só
agora acordei com o canto do galo. Saltei da cama, desci para o bar, varri
tudo, ajeitei as mesas, liguei o rádio, o locutor gritando bom dia para todos,
fazia festa, só assim levantou minha moral, fiz uma oração, acendi o fogo, fiz
o café comi com alguns biscoitos, enchi a frigideira com óleo, quando esquentou
joguei algumas coxinhas , uns pastéis e fui colocando um a um na estufa.
O padeiro trouxe os pães, coloquei na vitrine, assinei a
nota, veio o carro da coca-cola, deixou os refrigerantes, depois o da cerveja.
Quando tudo acalmou depois que Feiinho chegou, seu Joaquim, Os flanelinhas, o
chapa de caminhão, as bolas começaram a rolar, entrava cada uma em um buraco e
a tarde ia chegando, o sol caindo, as sombras aumentavam, diminuíam,
desapareciam voltavam novamente e caia a penumbra as luzes acendiam e o
fotógrafo e Roberto chegaram.
*
À noite, as estrela brilham pelas frestas das telhas de
zinco. Dormiu pesado, é tanto que ainda não tinha tirado a água do joelho. Abriu
os olhos, se esticou no colchão, espreguiçou-se. Colchão de molas ensacadas, dizia o prospecto
das casas baia. Comprou em dez vezes.
Uma aranha corre no
teto branco, do outro lado, perto da lâmpada de quarenta velas, pendurado num
fio preto, um pequeno mosquito mexe as patinhas.
Interessado empurra a coberta e a unha do dedão agarra na
linha do cobertor Paraíba. Isso dar-lhe aflição. Quase grita, mas aguenta
calado, observando a cena.
Na vizinhança o portão range. Roncos de motor de carro. Uma
Kombi. Depois um fusca. A aranha anda de lado, devagar, fingindo. A linha no
lasco da unha. O mosquito quieto. A sobrevivência. Jogados
a própria sorte. Caça e caçador. A aranha salta. No alvo. Faz um novelo. Fim do ato.
Levanta-se e calça os
chinelos. No vaso aponta o jato sobre um pelo escuro. Porra quase não acerto. Sacode. Puxa a descarga. Levanta o pé e puxa a lasca
de unha.
Lava o rosto. Escova os dentes. O dente deu para doer duma
hora para outra. Foi ao dentista. Tem que cuidar! Tem que... O PH, a saliva,
gengiva, céu da boca, aftas, dentina, esmalte, açúcares... As bactérias. As
invisíveis bactérias... tudo...tudo jogando contra.
É foda! Tudo jogando
contra.